Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental (PCN) foram elaborados “com a intenção de ampliar e aprofundar um debate educacional que (...) dê origem a uma transformação positiva no sistema educacional brasileiro”, segundo declara o Ministro da Educação e do Desporto, no texto “Ao Professor”, que abre todos os volumes dos PCN para as 5ª a 8ª séries. Os PCN já estão nas escolas, influenciando a prática pedagógica e também gerando inquietações, inclusive em nossa área.
Os PCN – e especificamente a proposta para Arte – envolvem complexas questões, que o Grupo Integrado de Pesquisa em Ensino das Artes, da Universidade Federal da Paraíba, tem se dedicado a investigar, desde 1997, quando tivemos acesso ao texto final da proposta de Arte para as 1a a 4a séries. Uma análise preliminar de alguns aspectos dos PCN resultou no Caderno de Textos Os Parâmetros Curriculares Nacionais e as concepções de arte (CCHLA/UFPB, 1997), já esgotado. Atualmente, encontra-se no prelo a coletânea É este o ensino de arte que queremos? (Editora da UFPB), que reúne artigos que analisam a fundo os dois documentos dos PCN para Arte, inclusive as propostas para cada linguagem artística. Os frutos de todo esse processo de trabalho têm sido apresentados e discutidos em diversas ocasiões, inclusive no XIII Encontro Nacional Arte na Escola (João Pessoa, abril 2001). Assim, retomamos aqui alguns pontos das análises, desenvolvidas no Grupo, quanto à viabilidade da proposta para Arte dos PCN, privilegiando o documento para as 5a a 8a séries (PCN-Arte), por ser este o nível de ensino em que o professor licenciado costuma atuar.
Em todos os ciclos da educação fundamental, os Parâmetros Curriculares dão à área de Arte uma grande abrangência, propondo quatro modalidades artísticas:
- Artes Visuais - com maior amplitude que Artes Plásticas, englobando artes gráficas, vídeo, cinema, fotografia e as novas tecnologias, como arte em computador;
- Música;
- Teatro;
- Dança, que é demarcada como uma modalidade específica.
Nos PCN-Arte, as propostas para essas diversas linguagens artísticas estão submetidas à orientação geral, apresentada na primeira parte do documento, que estabelece três diretrizes básicas para a ação pedagógica. São diretrizes que retomam, embora não explicitamente, os eixos da chamada "Metodologia Triangular" - ou melhor, "Proposta Triangular" -, defendida por Ana-Mae Barbosa na área de artes plásticas e já bastante conhecida de todos que participam do Projeto Arte na Escola. Segundo os próprios Parâmetros, o "conjunto de conteúdos está articulado dentro do processo de ensino e aprendizagem e explicitado por intermédio de ações em três eixos norteadores: produzir, apreciar e contextualizar" (PCN-Arte, p. 49). Vale ressaltar que, em nosso país, a Proposta Triangular representa a tendência de resgate dos conteúdos específicos da área, na medida em que apresenta, como base para a ação pedagógica, três ações mental e sensorialmente básicas que dizem respeito ao modo como se processa o conhecimento em arte.
Com os eixos norteadores adotados, os PCN-Arte colocam-se em sintonia com as buscas desenvolvidas no campo do ensino de arte, refletindo o próprio percurso da área. Neste sentido, podem ajudar a consolidar uma nova postura pedagógica e a concepção da arte como uma área de conhecimento específico. No entanto, há certamente um grande descompasso entre a realidade das escolas e essa renovação pretendida pelas instâncias regulamentadoras e pelos trabalhos acadêmicos, até porque os Parâmetros são bastante recentes: os PCN para as 5ª a 8ª séries completaram 2 anos de seu lançamento oficial no Palácio do Planalto em outubro de 2000 – e não chegaram de imediato a todas as escolas do país.
Ao se pensar a prática pedagógica na escola, a primeira grande questão é: como realizar, na sala de aula, a proposta dos PCN para Arte, com suas quatro modalidades artísticas? O fato é que os PCN-Arte, que apresentam uma proposta tão abrangente, não chegam a apresentar de modo claro a forma de encaminhar concretamente o trabalho com as diversas linguagens artísticas. As disposições neste sentido são poucas e dispersas pelo texto, de modo que a questão de quais linguagens artísticas, quando e como serão abordadas na escola permanece, em grande medida, em aberto. Os PCN-Arte optam pela organização dos conteúdos por modalidade artística - e não por ciclo, como nos documentos das demais áreas -, delegando às escolas a indicação das linguagens artísticas e "da sua seqüência no andamento curricular" (PCN-Arte, p. 54). Neste sentido, sugerem que, "a critério das escolas e respectivos professores, (...) os projetos curriculares se preocupem em variar as formas artísticas propostas ao longo da escolaridade, quando serão trabalhadas Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro." (PCN-Arte, p. 62-63 - grifos nossos).
À primeira vista, a flexibilidade presente na proposta de Arte procura considerar as diferenciadas condições das escolas, levando em conta também a disponibilidade de recursos humanos. Diante das condições do sistema de ensino em nosso país, seria irrealista pretender vincular a abordagem de cada linguagem artística a séries determinadas, num programa curricular fechado. Mas esta flexibilidade pode, em certa medida, comprometer a função básica dos Parâmetros Curriculares, que é garantir um padrão de qualidade no ensino, em nível nacional, inclusive em termos dos conteúdos estudados. Pois, na área de Arte, muito é deixado a cargo de cada escola ou mesmo do professor, inclusive com respeito à abordagem dos conteúdos. Neste sentido, os PCN-Arte declaram que: "Os conteúdos podem ser trabalhados em qualquer ordem, conforme decisão do professor, em conformidade com o desenho curricular de sua equipe" (PCN-Arte, p. 49 - grifos nossos).
Esta flexibilidade tem, então, várias implicações, como nos casos de transferência, que podem vir a trazer prejuízos para a formação do aluno. Já que cada escola pode selecionar tanto as modalidades artísticas quanto os próprios conteúdos, um aluno que tenha que se transferir pode tornar a repetir os mesmos conteúdos na mesma modalidade artística, ou então pode ter dificuldades em acompanhar um trabalho mais aprofundado em uma linguagem que não tenha sido contemplada em sua antiga escola. Nos casos de mudanças de escola, que afetam com freqüência os alunos das camadas populares, os efeitos práticos dessa flexibilidade podem até mesmo invalidar as recomendações do próprio documento acerca da continuidade do processo educativo (cf. PCN-Arte, p. 62).
A nosso ver, a proposta dos PCN na área de Arte é ambiciosa e complicada de ser viabilizada na realidade escolar brasileira. Para a sua aplicação efetiva, seria necessário poder contar com recursos humanos com qualificação - o que implica desde a valorização da prática profissional até ações de formação continuada e acompanhamento pedagógico constante -, além de recursos materiais que atendessem às necessidades da prática pedagógica em cada linguagem artística.
Uma questão crucial, portanto, é o professor que irá colocar em prática os PCN-Arte: qual deverá ser a sua qualificação? A característica geral da proposta, que se direciona para o resgate dos conhecimentos específicos da arte, a complexidade dos conteúdos nas diversas modalidades artísticas, tudo isso parece indicar a necessidade de professores especializados em cada linguagem. Mas, na verdade, não há definições claras sobre a formação do professor de Arte, nem nos PCN, nem na atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Por conseguinte, como muitas vezes a contratação de professores está submetida à lógica de custos e benefícios, acreditamos que dificilmente as escolas contarão - a curto ou médio prazo - com professores especializados em cada uma das quatro modalidades artísticas dos PCN-Arte.
Diante deste quadro, vislumbramos três perspectivas, não muito promissoras:
- Poderá ser exigida do professor uma polivalência ainda mais ampla - e mais inconsistente - que aquela promovida pela Educação Artística e já tão criticada. Inclusive as provas dos concursos para ingresso em redes públicas de ensino poderão ser elaboradas neste formato, abordando as diversas linguagens artísticas, como já acontece em muitos locais nos concursos para Educação Artística.
- As propostas dos Parâmetros serão realizadas apenas na medida dos recursos humanos disponíveis. Assim, se o professor de Arte de uma dada escola for formado em Música, por exemplo, será esta a linguagem artística contemplada no currículo. Uma outra variante desta situação, que já começa a ter lugar em estabelecimentos particulares, é a escola escolher a(s) modalidade(s) artística(s) que considera mais conveniente(s) para os seus interesses, contratando um professor com formação adequada. Neste caso, podem pesar argumentos acerca da conveniência de evitar reclamações dos pais na hora de comprar material para as aulas de Artes Visuais, ou então sobre como determinado campo da arte pode contribuir para o marketing da escola - ao produzir apresentações teatrais, por exemplo.
- Ou ainda - e pior - as propostas dos PCN poderão servir como base para planejamentos e relatórios que ficarão apenas no papel, sem mudanças efetivas na prática educativa em sala de aula.
Enfim, acreditamos que, em termos de Brasil, serão poucas as escolas - de elite, certamente - que se empenharão em oferecer as quatro linguagens artísticas de modo consistente, contratando para tal diversos professores com formação específica.
Tais perspectivas colocam em discussão a possibilidade de os PCN-Arte trazerem mudanças efetivas para a prática pedagógica na área. A pretensão de um único professor realizando as propostas dos PCN-Arte em todas as linguagens artísticas contradiz a amplitude e profundidade das propostas específicas, atualizando a polivalência e conduzindo, inevitavelmente, a um esvaziamento de conteúdos. Se os PCN-Arte forem implementados desta forma, ou se ficarem apenas no papel - em belos planejamentos e relatórios -, estarão sendo reduzidos a meros atos de discurso, mascarando, na verdade, a ausência de renovação das ações pedagógicas em arte.
Receamos que isto possa vir a acontecer, até porque os próprios PCN prevêem um processo progressivo para sua aplicação, como base para a atuação do professor em sala de aula - o que nem sempre está ocorrendo. Segundo os documentos introdutórios para os diversos ciclos, os Parâmetros deveriam ser utilizados progressivamente para subsidiar:
- as próprias ações do MEC para o ensino fundamental – o que já está sendo feito;
- as revisões ou adaptações curriculares desenvolvidas pelas secretarias de educação, no âmbito dos estados e municípios;
- a elaboração do projeto educativo (proposta pedagógica) de cada escola, construído num processo dinâmico de discussão, envolvendo toda a equipe.
E, só então, no quarto e último nível de concretização, caberia ao professor a realização da proposta curricular na sala de aula. Este processo seria capaz, portanto, de respaldar a ação do professor na realização das propostas dos PCN-Arte. Temos observado, contudo, que muitas vezes os PCN-Arte simplesmente "caem na cabeça" do professor, de quem a direção da escola cobra a aplicação das propostas, a despeito da falta de apoio e de condições.
Diante deste quadro, é fundamental que as escolas assumam a responsabilidade de elaborar o seu “projeto educativo” (nos termos dos PCN) ou “proposta pedagógica” (conforme a LDB). Seguindo princípios de flexibilidade e autonomia, a LDB delega aos estabelecimentos de ensino a incumbência de “elaborar e executar sua proposta pedagógica” (Lei 9394/96, Art. 12), o que é reafirmado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (Resolução no 2/98 – CNE), que têm – estas sim – caráter obrigatório. Pois vale lembrar que, embora o MEC esteja colocando os PCN como referência para a avaliação das escolas e alocação de recursos, do ponto de vista formal eles não têm obrigatoriedade.
Segundo o Parecer 03/97 do Conselho Nacional de Educação (CNE), “os PCN resultam de uma ação legítima, de competência privativa do MEC e se constituem em uma proposição pedagógica, sem caráter obrigatório, que visa à melhoria da qualidade do ensino fundamental e o desenvolvimento profissional do professor. É nesta perspectiva que devem ser apresentados às Secretarias Estaduais, Municipais e às Escolas” (grifos nossos).
Cada escola pode e deve, portanto, elaborar sua própria proposta pedagógica. Se construída de forma participativa e compromissada – não se revestindo apenas de um caráter burocrático –, deve decidir como utilizar os recursos humanos e materiais disponíveis de modo a atender às necessidades específicas de seu alunado. A proposta pedagógica é, pois, o espaço ideal para definir o melhor modo de encaminhar o trabalho de arte na escola, fazendo uso da autonomia prevista na LDB e nas Diretrizes Curriculares, e atendendo à flexibilidade da proposta dos PCN-Arte. Neste quadro, sendo analisados e discutidos com cuidado, os PCN-Arte podem ser utilizados para respaldar uma atuação mais aprofundada em determinada linguagem artística, ou ainda como base para reivindicar as condições necessárias para uma prática pedagógica de qualidade.Para concluir, é preciso deixar claro que, apesar de todos os questionamentos em torno dos PCN-Arte, reconhecemos a importância destes documentos, que podem ajudar a fortalecer a presença da arte na escola. Sem dúvida, os PCN-Arte sinalizam um redirecionamento do ensino de arte, respondendo às buscas da própria área. É preciso lembrar, no entanto, que as normas contam sobretudo pelos seus efeitos, de modo que os PCN dependem de sua concretização - ou seja, de sua realização na prática escolar. Nesta medida, tanto a renovação da prática pedagógica em arte quanto a “transformação positiva no sistema educacional brasileiro”, a que se refere o Ministro da Educação, passam necessariamente pela prática concreta – com todos os seus conflitos – , pois é nela que tais mudanças terão que ser construídas e conquistadas.
Fonte: Maura Penna*, Arte na Escola
Acessado em 27-11-2011
* Professora do Departamento de Artes da UFPB, lecionando no curso de Educação Artística e no Mestrado em Educação. Coordenadora do Grupo Integrado de Pesquisa em Ensino das Artes. Graduada em Música e em Educação Artística pela UNB. Mestre em Ciências Sociais pela UFPB. Doutora em Lingüística pela UFPE.
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