O Cérebro e as Artes Visuais




Considerações Históricas sobre o Cérebro

Sempre que o homem pensou sobre o seu próprio cérebro visando a explicações de estrutura e função, criou representações simbólicas e modelos. A evolução do homem para a aquisição de funções cerebrais superiores e cultura levou a que ele mesmo desenvolvesse conceitos ou ideias mutáveis e polêmicas sobre ambos o cérebro e a mente (12). No maravilhoso livro The Enchanted Loom (4), fruto de uma tarefa multi-institucional e multidisciplinar sobre a história das neurociências, são expostos de maneira peculiar os mais diversos momentos (brilhantes ou não) da evolução de pensamentos, modelos e teorias sobre o cérebro. Indica-se nessa obra como Aristóteles (384-322 AC) tinha uma visão cardio-centrista das funções do organismo (the heart as the acropolis of the body), diferentemente de Platão (429-347 AC) ou de Galeno (129-199) que afirmava: It seems to me an acceptable assertion that the soul itself resides within the body of the brain where the activity of thought is produced, and the memory of sensorial images is stored there.


"Cérebro exposto em crânio" Tomado de Vesalius em Sanders e O'Malley (1950).


Corsi (1991) comenta como estes dois últimos filósofos possuiam uma visão cérebro-centrista. Os ventrículos cerebrais foram mantidos por muito tempo como os detentores das faculdades mentais (animal spirits). Com o advento das magníficas dissecções dos grandes anatomistas houve uma diminuição do papel assinalado aos ventrículos. Vesalius (1514-1564), por exemplo, provavelmente associado ao artista Ticiano, produziu obras magníficas da anatomia universal como a Humani Corporis Fabrica (1543; Saunders e O’Malley, 1950). Outro grande anatomista, Bernard S. Albinus (1697-1770) associou-se ao artista Jan Wandelaar produzindo, entre outras, obras como Tabula Sceleti et Musculorum Corporis Humani (1747) (8).


"Corte sagital Cérebro-Ventrículos" Modificado de Da Vinci, em Fincher (1981).


No caso de Leonardo da Vinci (1452-1519), ele próprio foi um genial pintor, inventor, matemático, anatomista, e desenhista. Caso semelhante foi o de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), um dos maiores pintores e escultores da arte renascentista. Muitas das versões, algumas magníficas, outras nem sempre precisas, sobre o cérebro, nervos e músculos foram conseqüências desse período fertil da história da humanidade (4;6).

Nesse contexto Corsi (1991) menciona o pesquisador dinamarquês Nicolaus Steno que ao oferecer em Paris (1665) seu Discours sur l’Anatomie du Cerveau assim introduzia sua palestra: Gentlemen, instead of promissing to satisfy your curiosity about the anatomy of the brain, I intend here to make the sincere, public confession that this is a subject on which I know nothing at all. Steno adotou uma atitude muito cautelosa quando da descrição do cérebro e de suas funções, contrariamente às afirmações, segundo ele levianas, de René Descartes (1596-1650) e Willis (1621-1675) para os quais nothing was difficult. Steno sempre esteve proclamando a necessidade do que ele chamava "uma certeza convincente", a que somente poderia ser atingida após detalhadas dissecções. Críticas severas foram então feitas a sistemas imaginários como aqueles de Descartes, que referia-se ao suposto papel da glândula pineal como centro regulatório do processamento de informação sensorial, através da ativação dos espíritos endógenos. Da mesma maneira foram criticados os preceitos cartesianos relacionados com a definição de ser humano como uma simples máquina feita de terra.

Discussões recentes sobre inteligência artificial podem ser encontradas em Blakemore e Greenfield (1987), Corsi (1991), Ford and Hayes (1998). Uma óbvia conseqüência da filosofia cartesiana foi o desdobramento do estudo das funções cerebrais em pequenos subprojetos sobre porções do cérebro, visão esta que se estendeu aos séculos XVI e XVII. Naturalmente novas pesquisas mais sofisticadas deram lugar ao desenvolvimento da lupa e da microscopia, levando a avanços no conhecimento macro e microscópico do SNC e sistema nervoso periférico, graças também à modelagem em cera e dissecções detalhadas. Entretanto, uma consequência negativa destas abordagens foi que ao fragmentar o cérebro nos seus elementos constitutivos, a necessária reconstrução a partir das mesmas partes se tornou cada vez mais complicada.

Corsi (4) comenta como Vesalius sentia-se capaz de explicar muitas das funções cerebrais e suas disfunções, após suas magníficas dissecções, mas ao mesmo tempo sentia-se incapaz de entender como o cérebro poderia desempenhar os ofícios da imaginação, meditação, pensamento e relembranças. Nesse contexto ficou então evidente a importância histórica da proposta de dualismo corpo-mente cartesiana. Essa noção persistiu por séculos e tem sido motivo de agitadas disputas entre cientistas e filósofos. Uma conseqüência natural desta visão de Descartes foi o incentivo a atitudes mecanicistas que privilegiaram a busca pelos assim chamados automatismos fisiológicos. É interessante mencionar neste ponto o recente livro de Damásio (1994), onde o autor propõe, de maneira muito elegante, interações corpo-mente e razão-emoção, em completo antagonismo com a proposta cartesiana.

Naturalistas, antropólogos, filósofos e neurocientistas, entre eles Willis, Haller, Flourens, Broca, Wernicke, Ferrier, Sherrington, Darwin, Golgi, Cajal, Pavlov, Papez, McLean, Penfield, Lorenz, Jackson e Freud, cada um em seu momento, contribuiram, nos séculos seguintes, para visões modificadas do cérebro e eventuais disfunções. Sugeriram teorias de localização de funções, centros motores e sensoriais, reflexos, neurônio como unidade morfo-funcional cerebral, sistema límbico, homúnculo, imprinting, psicanálise, atividade elétrica cerebral e neurociências cognitivas.


O Impacto da Biologia Molecular e da Computação nas Neurociências Contemporâneas


O avanço nas técnicas eletrofisiológicas (registros unitários, patch e voltage clamps), assim como o recente boom nas técnicas da assim chamada biologia molecular têm trazido o paradoxo entre o conhecimento mais profundo e sofisticado em modelos de microuniversos neurais e o da aparentemente inviável tarefa de recolocar as partes coerentemente no seu lugar.


"Head". Tomado da Images Gallery do Visualization Laboratory (1999)


Nas Neurociências Contemporâneas destaca-se de maneira clara a necessidade de novas associações artista-cientista, com o objetivo de permitir uma interpretação mais realista das dissecções moleculares, por analogia com as dissecções da Renascença. Assim como naquelas épocas, na ciência e na cultura do presente, há belos exemplos para ilustrar os conceitos de mente e cérebro. As ferramentas contemporâneas para nossos modelos são obviamente computacionais, eletrônicas e virtuais. Os sites do Visualization Laboratory e do Instituto Neurológico de Montreal , entre outros, ilustram composições mixtas de ressonância magnética nuclear (MRI), tomografia de emissão de pósitrons (PET) e reconstrução tridimensional de cérebros humanos, células hipocampais, entre outras. É interessante consultar, nesta época de fascínio pelas moléculas, a página da Molecular Expressions, onde os chamados microscapes ilustram belíssimas paisagens com cristais de diferentes compostos, entre eles amino ácidos e DNA. Um exemplo de integração, possível no tempo, tem sido dado pelo trabalho de um dos descobridores da dupla fita de DNA, Francis Crick. Seus mais recentes trabalhos tratam dos fenômenos celulares e moleculares que explicam a consciência.

O gigantesco projeto do NIH e da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos "The Visible Human" ilustra, de maneira magnífica, a fusão entre as intenções artísticas e o uso de ferramentas computacionais para o estudo da anatomia e em particular das Neurociências. Poderíamos citar o próprio logotipo do projeto que funde um perfil anatômico de Vesalius, onde o braço esticado apresenta uma baixa resolução digital (poucos dpi) e na parte posterior correspondente ao cérebro aparecem volumes, produto de reconstrução tridimensional, de imagens adquiridas por ressonância magnética nuclear. Ou seja, um exemplo da fusão histórica da arte com a tecnologia contemporânea. Não é surpreendente que dois subprojetos do "Visible Human", sejam denominados "Vesalius" e "Beyond Vesalius", numa óbvia homenagem a esse grande anatomista do século XVI.


"Logo Project". Tomado do Visible Human Project



"Neuroimmersion: Diving in Unknown Neuronal Waters"
by Norberto Garcia-Cairasco (1999).


O impacto das técnicas computacionais e a miríade de informações atuais sobre o cérebro poderiam ser resolvidos no futuro, através da chamada Neuroinformática. O NIH nos EUA apoia o projeto "Neuroinformatics: Putting the Brain Back Together Again", no contexto do Human Brain Project. Segundo o NIH, através da execução de vários projetos cooperativos, sem fronteiras e multi-institucionais, procura-se evitar que o acúmulo exponencial de informação nas Neurociências coloque em perigo o combustível que tem permitido que a pesquisa sobre o cérebro e o comportamento esteja situada na fronteira da ciência.


Neurobiologia Integrativa e as Artes Visuais


O desempenho humano em tarefas estéticas como aquelas necessárias às artes plásticas tem sido geralmente correlacionado com a nossa competência de abstração e contemplação crítica da obra criada. Consideremos dois tipos de universos: inicialmente aquele de gênios que apresentavam quadros maníaco-depressivos (Tenessee Williams, Ezra Pound) ou sofriam de crises epilépticas (Van Gogh). Seu desempenho artístico e criativo não teve comprometimento, ou talvez foi enriquecido pelas patologias que os afligiam? (1; 9). Outro exemplo é o do universo cheio de anormalidades, aquele dos indíviduos com sérias lesões cerebrais, com retardo mental severo, onde a função sensório-motora está grandemente deteriorada, mas têm desempenhos excepcionais em tarefas específicas, entre elas as artísticas (idiot savants; Winner, 1998). Poderíamos explicar as performances desses dois tipos de indivíduos à luz de abordagens neurocientíficas contemporâneas, poderosas, sofisticadas, porém ainda limitadas? Adicionalmente, o reconhecimento de eventos evolutivos para explicar a origem da inteligência humana, nos coloca necessariamente na trilha das descobertas de elaboração de processos complexos, cognitivos, no cérebro de primatas não humanos e de outras espécies não primatas. Os relatos de pesquisas sobre a expressão artística e estética em macacos e gatos (2; 10), chamam a atenção para a necessidade de definições de arte e estética, num panorama evolutivo e não apenas antropomórfico. Essas questões serão com certeza estudadas e potencialmente resolvidas no próximo século.


“Poeta de Gaveta: Inspiration para Estudos Cerebrais”.
Norberto Garcia-Cairasco (1998).


Minha conclusão é de que uma mudança profunda, integrativa, de abordagem nas Neurociências, da Neurociência Cognitiva à Neurociência Molecular, talvez nos leve a explicações mais próximas sobre nosso cérebro e o tipo de modelo que o explica. Segundo Wilson (1998), os filósofos do Iluminismo, um sonho Icariano da mente, cujo motor principal foi a ciência, acreditavam que o Universo poderia ser explicado por um conjunto de regras básicas ordenadas apropriadamente.

Óbvias contradições poderiam ser decorrentes do antagonismo de versões reducionistas e holistas aplicadas a esta e outras interpretações de ordem universal. Dessa maneira, acreditando na necessidade da integração entre as ciências, as artes e as humanidades, como a única saida viável para o futuro do homem e do planeta que ele habita, Wilson (1998) no seu mais recente livro Consilience. The Unity of Knowledge empresta o termo jumping together of knowledge de Whewel (1840) e concretiza sua proposta sugerindo: "The ideal scientist thinks like a poet and works like a bookkeeper, and I believe if gifted with a full quiver, he also writes like a journalist. As a painter stands before bare canvas, or a novelist recycles past emotions with eyes closed, he searches his imagination for subjects as much as for conclusions, for questions as much as for answers".

Em artigo próximo gostaria de explorar, utilizando referências recentes de Neurociência Cognitiva e Teoria Estética, como o cérebro processa a informação estética e regula a execução de performances artísticas.


Agradecimentos


Aos Técnicos, alunos de Graduação e Pós-Graduação, e aos Pesquisadores colaboradores, que ao longo dos anos têm participado da execução de inúmeros processos criativos em nosso Laboratório. Aos colegas que revisaram e fizeram sugestões nas versões preliminares deste artigo. À FMRP-USP pelo apoio institucional e aos Programas da FAPESP, CNPq, CAPES, PRONEX, PADCT e FAEPA, pelo apoio financeiro.

Este texto foi modificado e adaptado para este Magazine, dos Anais do I Simpósio do Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental "Neurociências Integrativas" celebrado no Departamento de Fisiologia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-23-24 de Outubro de 1998. Agradeço finalmente ao Prof. Dr. Sérgio Mascarenhas, pela honrosa indicação de meu nome para sua apresentação no III Congresso sobre Arte e Ciência da ECA-USP em Outubro de 1999 e à Prof. Dra Elza Ajzenberg pelo convite para apresentá-lo no mesmo.


Referências Bibliográficas


1. Arnold, W.N. Vincent Van Gogh. Chemicals, Crises and Creativity. Birkhäuser. Boston, 1992.

2. Busch, H and Silver, B. Why cats paint. A theory of feline aesthetics. Ten Speed Press, Berkeley Califormia, 1994.

3. Blakemore, C. and Greenfield, S. Mindwaves. Basil Blackwell, Oxford, 1987.

4. Corsi (Ed.) The Enchanted Loom. Chapters in the History of Neuroscience. Oxford University Press, New York, 1991.

5. Damasio A.R. Descartes Error. Emotion, Reason and the Human Brain. Avon Books, New York, 1994.

6. Fincher, J. The Human Body: The Brain: Mistery of Matter and Mind. US New Books, US News and World Report, Inc. Washington, USA. 1981.

7. Ford, K.M. and Hayes, P.J. On computational wings: Rethinking the goals of artificial intelligence. Scientific American. Special Issue. Exploring Intelligence. 9(4)78-83, 1998.

8. Hale, R. B and Coyle, T. Albinus on Anatomy. Dover Publications, Inc. New York, 1979.

9. Jamison, K.R. Manic-depressive illness and creativity. Scientific American. Special Issue. Mysteries of the Mind. 44-52, 1997.

10. Lenain, T. Monkey Painting. Reaktion Books, London, 1997.

11. Saunders, J.B. deC. M. and O’Maley, Ch.D. The Illustrations From the Works of Andreas Vesalius of Brussels. Dover Publications, New York, 1950.

12. Tattersall, I. Becoming Human. Evolution and Man Uniqueness. Harcourt Brace & Company, New York, 1997.

13. Wilson, E.O. Consilience. The Unity of Knowledge. Alfred A. Knopf, New York, 1998.

14. Winner, E. Uncommon talents: Gifted children, prodigies and savants. Scientific American. Special Issue. Exploring Intelligence. 9(4): 32-37, 1998.


O Autor


Norberto Garcia-Cairasco, PhD
E-mail: ngcairas@fmrp.usp.br

Professor Assistente Doutor. Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo.

Diretor do Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia e Experimental.

Atividades de Pesquisa Atuais: Neurobiologia Comportamental e Molecular das Epilepsias. Plasticidade Cerebral e Comportamento. Métodos e Modelos Experimentais em Neurobiologia.


Fonte: Revista Cérebro & Mente
- Uma realização do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas/SP

Publicado em: 15/01/2000

Data: 06/07/2006

Aprendizagem e Mudanças no Cérebro


Até há pouco tempo, os neurocientistas acreditavam que, uma vez completado seu desenvolvimento, o cérebro era incapaz de mudar, particularmente em relação às células nervosas, ou neurônios. Aceitava-se o dogma segundo o qual os neurônios não podiam se auto-reproduzir ou sofrer mudanças significativas quanto às suas estruturas de conexão com os outros neurônios. As conseqüências práticas dessas crenças implicavam em que: a) as partes lesionadas do cérebro, tais como aquelas apresentadas por vítimas de tumores ou derrames, eram incapazes de crescer novamente e recuperar, pelo menos parcialmente, suas funções e b) a experiência e o aprendizado podem alterar a funcionalidade do cérebro, porém não sua anatomia.

Parece que os neurocientistas estavam errados em ambos os casos. As pesquisas dos últimos 10 anos têm revelado um quadro inteiramente diferente. Em resposta aos jogos, estimulações e experiências, o cérebro exibe o crescimento de conexões neuronais. Embora os pioneiros da pesquisa em comportamento biológico, tais como Donald Hebb, do Canada e Jersy Konorski, da Polônia, acreditassem que a memória implicava em mudanças estruturais nos circuitos neurais, ainda não se dispunha de evidências experimentais que comprovassem essa noção.

Em experiências realizadas com ratos, a neuroanatomista americana Dr. Marian Diamond foi capaz de demonstrar que os animais que foram criados em um ambiente enriquecedor -- uma gaiola cheia de brinquedos e dispositivos tais como bolas, rodas, escadas, rampas, etc. -- desenvolviam um córtex cerebral significativamente mais espesso do que aqueles criados em um ambiente mais limitado, sem os brinquedos ou vivendo isolados. O aumento da espessura do córtex não era devido apenas a um maior número de células nervosas, mas havia também um aumento expressivo de ramificação de seus dentritos e das interconexões com outras células.


Ambiente pobre em objetos


Um ambiente enriquecedor, que permite os ratos interagir com os brinquedos em suas gaiolas, provoca mudanças anatômicas no córtex cerebral.


O gráfico à direita mostra como o número médio de ramificações observadas nas células estelares, que são encontradas na quarta camada do córtex visual do rato, é maior nos animais criados em ambientes enriquecedores (reta identificada como EC, isto é, condição enriquecedora) do que nos animais criados juntos em grupos sociais, (identificados como SC, ou condição de grupo social), porém desprovidos de brinquedos. Por sua vez, os ratos SC apresentam um número maior de ramificações nas células estelares do que os animais criados isolados e sem brinquedos (IC, ou grupo de condição de isolamento). Uma diferença ainda maior pode ser vista nas ramificações de quarto e quinto nível. Em outras palavras: as ramificações originadas do corpo da célula não aumentam devido a uma experiência sensorial, motora ou social mais rica; o inverso é verdadeiro para as ramificações no ponto dos longos processos neuronais. Isso constitui uma evidência de que as células estelares crescem e geram novas ramificações naquelas pré-existentes, e isso é um resultado revolucionário.

As partes das células estelares que crescem são os dendritos. É através dos dendritos que um neurônio recebe os impulsos nervosos de outras células, que são transmitidos através do corpo celular e a partir daí para o axônio. Consequentemente, o crescimento das ramificações dos dendritos só pode significar que os processos de intercomunicação nas células do córtex aumentaram e que mais dendritos tornam-os mais efetivos em termos de regulação da atividade dos circuitos neuronais.


Esse crescimento acontece também nos seres humanos?


Parece que sim, embora ainda não existam evidências diretas, tais como as observadas por Diamond em ratos. Porém, sabemos que as tarefas de ativação mental são acompanhadas por muitas mudanças, tais como mudanças no metabolismo cerebral (consumo de glucose por células cerebrais, aumento do fluxo e temperatura do sangue etc. Essas mudanças podem agora ser observadas diretamente através de novos instrumentos de imagens computadorizadas, como por exemplo as imagens por ressonância magnética funcional (fMRI) e a tomografia de emissão de pósitron (PET).


Fluxo Sanguíneo Cerebral (CBF) durante uma tarefa de ativação mental. O sujeito controle normal, linha de base (esquerda) e tarefa matemática (direita). Nesse indivíduo, o aumento da perfusão durante as tarefas matemáticas é visível tanto na área frontal inferior e parietal esquerda.
Fonte: Villanueva-Meyer et. cols. - Alasbimn Journal

A conseqüência prática do conhecimento de que as células nervosas crescem e se modificam em resposta às experiências e aprendizagem enriquecedoras é extraordinária:

  • A educação de crianças em um ambiente sensorialmente enriquecedor desde a mais tenra idade pode ter um impacto sobre suas capacidades cognitivas e de memória futuras. A presença de cor, música, sensações (tais com a massagem do bebê), variedade de interação com colegas e parentes das mais variadas idades, exercícios corporais e mentais podem ser benéficos (desde que não sejam excessivos). Na verdade, existem muitos estudos mostrando que essa "estimulação precoce" é verdadeira. Ainda precisamos provar se isso provoca um crescimento no cérebro das crianças, como acontece com os ratos;
  • Pessoas que sofreram lesões em partes de seus cérebro, podem recuperar parcialmente as funções perdidas submetendo-se a estimulação mental intensa e diversificada, de maneira análoga à fisioterapia para os músculos debilitados;
  • Alimentos ou drogas artificiais que aumentem a ramificação dos dendritos, o crescimento dos neurônios e seu aumento de volume podem ajudar na melhora do desempenho mental e memória nas pessoas normais ou em pacientes com doenças degenerativas do cérebro, tais como Alzheimer.
Na verdade, um estudo pioneiro realizado por Dr. David Snowdon um neurocientista da University of Kentucky com freiras católicas vivendo em um convento no norte dos Estados Unidos, revelou fatos assombrosos que apoiam a teoria da estimulação cerebral. Essas freiras foram escolhidas porque parecem apresentar uma longevidade maior que o resto da população: várias delas já haviam atingido mais de cem anos de idade. As freiras que viveram mais e que mostravam uma melhor saúde mental eram quase sempre aquelas que praticavam atividades tais como pintura, ensino e palavras cruzadas, que exigiam um constante "exercício mental".
De fato, Dr. David Snowdon surpreendeu-se ao observar nos exames post-mortem dos cérebros doados pelas freiras falecidas, que alguns que estavam com melhores condições mentais devida a essa rica estimulação, apresentavam todos os sinais da insidiosa doença de Alzheimer. Essa doença degenerativa nervosa, altamente incapacitante, aparece em cerca de 20% de todas as pessoas com mais de 80 anos de idade, e se caracteriza por inúmeras alterações patológicas dos neurônios, e pela morte maciça de células, especialmente as células corticais. Isso provoca profunda perda de memória, e outros tipos de deterioração do comportamento e da personalidade.

Conclusões

O crescimento neuronal e a regeneração enquanto resposta a fatores ambientais já não parecem impossível, devido ao que a neurociência já tem revelado em experiências com animais e seres humanos. Este conhecimento, de par com a descoberta dos mecanismos que tornam isso possível constituirá um portão para um futuro fantástico para a humanidade; um futuro onde talvez possamos manipular e influenciar nossas próprias capacidades mentais de um modo inteiramente imprevisível. Isso tem constituído o sonho duradouro tanto da ciência como da ficção científica e talvez estejamos situados no limiar de sua realização.

Fonte: Silvia Helena Cardoso, PhD. Psicobióloga, mestre e doutora em Ciências.
Fundadora e editora-chefe da revista Cérebro & Mente.
Universidade Estadual de Campinas.
Renato M.E. Sabbatini, PhD.
Diretor Associado do Núcleo de Informática Biomédica.
Universidade Estadual de Campinas.
Revista Cerebro & Mente, nº 11, 2000

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