A transição para a era digital é a mais radical transformação da nossa história intelectual desde a invenção do alfabeto grego. Sim, o momento é histórico: há mudanças profundas na leitura, na escrita – e talvez até dentro do cérebro humano.

André Petry, de Nova York

Sócrates, o homem mais sábio de todos os tempos, estava enganado. Com a genial invenção das vogais no alfabeto grego, a escrita estava se disseminando pela Grécia antiga – e Sócrates temia um desastre. Apreciador da linguagem oral, achava que só o diálogo, a retórica, o discurso, só a palavra falada estimulava o questionamento e a memória, os únicos caminhos que conduziam ao conhecimento profundo, à sabedoria. Temia que os jovens atenienses, com o recurso fácil da escrita e da leitura, deixassem de exercitar a memória e, como a palavra escrita não fala, perdessem o hábito de questionar. Sua mais conhecida diatribe contra a escrita está em Fedro, de Platão, seu fiel seguidor. Ali, Sócrates diz que a escrita daria aos discípulos “não a verdade, mas a aparência de verdade”. O grande filósofo intuiu que a transição da linguagem oral para a escrita seria uma revolução. Foi mesmo, só que numa direção promissora. Permitiu o mais esplêndido salto intelectual da civilização ocidental.

Agora, 2.500 anos depois, estamos às voltas com outra transição revolucionária. Da cultura escrita para a digital, há uma mudança de fundamento como não ocorre há milênios. A forma física que o texto adquire num papiro de 3000 anos antes de Cristo ou numa folha de papel da semana passada não é essencialmente distinta. Nos dois casos, existem enormes diferenças de qualidade e clareza, mas é sempre tinta sobre uma superfície maleável. Na era digital, a mudança é radical. O livro eletrônico oferece uma experiência visual e tátil inteiramente diversa. É uma outra forma. Como diz o francês Roger Chartier, professor do College de France e especialista na história do livro, “a forma afeta o conteúdo”. A era digital, sustenta ele, nos fará desenvolver uma nova relação com a palavra escrita. Para a neurocientista Maryanne Wolf, autora de Proust e a Lula, um livraço sobre o impacto da leitura no cérebro, o momento atual é tão singular quanto o da Grecia: “Como os gregos antigos, vivemos uma transição dramaticamente importante – no nosso caso, de uma cultura escrita para uma cultura mais digital e visual”.

Há séculos que, depois da argila, do papiro e do pergaminho, a humanidade transmite conhecimento no papel. Dos livros manuscritos pelos monges medievais à página enviada por fax, era sempre papel. Lentamente, escrita e leitura passaram a se dar através de telas de vidro – mais propriamente de cristal líquido, de diodos emissores de luz. Começaram a sair livros para leitura em palmtop, ainda nos anos 90, quando já era possível lê-los no computador e em laptop. Depois, vieram os smartphones. Por fim, os tablets e os leitores eletrônicos desses que acabam de chegar ao mercado brasileiro: Kobo, Kindle, Google Play. Nos países ricos, a transição está mais avançada. Desde o ano passado, a Amazon, um mamute do varejo on-line, já vende mais livros digitais do que livros físicos no mercado americano. Na Inglaterra, a virada aconteceu em agosto, em grande parte em razão da acolhida estrondosa de Cinquenta tons de cinza de E.L. James, que vendeu 2 milhões de exemplares eletrônicos em quatro meses. Na Alemanha, o ano deverá fechar com a venda de 800 mil leitores eletrônicos e tablets, o triplo em relação a 2011. Sob qualquer ângulo que se examine o cenário, é um momento histórico. Fazia mais de quatro milênios, desde que os gregos criaram as vogais – o aleph semítico era uma consoante, que virou o alfa dos gregos e depois o “a” do nosso alfabeto latino -, que o ato de ler e escrever não sofria tamanho impacto cognitivo. Havia mais de cinco séculos, desde os tipos móveis de Gutenberg, o livro não recebia intervenção tecnológica tão significativa.

Na era do pós-papel, a leitura, antes um aro solitário por excelência, está virando outra coisa. O Kindle, da Amazon, tem um dispositivo que exibe os trechos do livro sublinhados por outros leitores. Informa até quantos o fizeram. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, por exemplo, cinco leitores assinalaram uma frase do probo Jacó que não era Medeiros, nem Valadares ou Rodrigues, era Tavares, na qual ele se desculpa por mentir porque “a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas”. Logo será possível entrar em contato com esses leitores, mandar-lhes um e-mail. O pesquisador Bob Stein, fundador de uma entidade que estuda o futuro do livro, diz que a leitura solitária será substituída por uma atividade comunitária eletronicamente conectada. É o que ele chama de “leitura e escrita sociais”.

Já existem “livros enriquecidos”, que trazem trilha sonora, vídeos e fotografias, novidades já disponíveis no Brasil. Na Inglaterra, a edição enriquecida de Aventuras de Sherlock Holmes emite sons – gritos, trovões, ventos uivantes – à medida que o leitor avança nas páginas. Tudo é acionado automaticamente. Uma edição de On the Road (Na Estrada), clássico de Jack Kerouac, traz mapa, biografias, fotos e um áudio de quase dezessete minutos do autor lendo um trecho do livro, de origem até hoje desconhecida. É um aplicativo para tablet. A “versão enriquecida” de um livro é uma tolice para quem arar as 1.500 páginas de Guerra e Paz, mas é excelente como material de pesquisa, fonte documental.

Até os segredos da leitura, antes indevassáveis na mente do leitor, agora estão sendo revelados. Amazon, Apple e Google espiam o leitor a qualquer hora. Sabem quantas páginas foram lidas, o tempo consumido, os títulos preferidos. A Bames & Noble, a maior cadeia de livrarias dos Estados Unidos, analisando dados colhidos pelo seu leitor eletrônico, o Nook, descobriu que livros de não ficção são lidos de modo intermitente. Os romances, não. Leitores de policiais são mais rápidos que os de ficção literária. São informações, impensáveis no mundo do papel, que revelam hábitos de leitura e vão abastecer as editoras para atender ao gosto do público. Nos EUA, já existe um movimento de “proteção da privacidade do leitor”, destinado a disciplinar ate onde as editoras podem ir. No tempo do papel – é ainda o tempo de hoje, mas é cada vez mais um tempo passado -, a única forma de espiar a mente de um leitor era por meio da leitura furtiva de uma anotação manuscrita na margem da página de um livro perdido num sebo. Parece que faz décadas.

O ofício do escritor – pelo menos daquele escritor que está abaixo dos palhaços mas acima das focas amestradas, como diria John Steinbeck – também passa por uma metamorfose. Há editoras que já testam livros digitalmente antes de lançar a versão impressa. A Sourcebooks, de Chicago, divulga a edição preliminar on-line e pede sugestões aos leitores, as quais os autores, às vezes, incorporam à versão impressa. A Coliloquy, criada há um ano, é uma editora digital cuja proposta são livros coletivos, ou “sociais”. Os leitores sugerem personagens e tramas, as preferências são enviadas ao autor (ou autores), que adapta o texto ao gosto da maioria. Os leitores palpitam até sobre a aparência dos personagens – cor dos olhos, dos cabelos, porte físico. O site da Coliloquy diz que “o resultado é uma experiência narrativa incrivelmente fluida e imersiva”. É um self-service literário. Daí não se espera nenhuma obra-prima, mas quem sabe? Bernard Shaw dizia que “a estrada da ignorância é pavimentada de bons editores”.

A escrita no universo on-line é o próprio portal da estrada da ignorância, com pontuação de Murphy, siglas leporídeas, exclamações pandêmicas!!!, tudo num patoá onomatopeico de hehehes e rã-rã-rás enfatizado por LETRAS GRANDONAS ASSIM. O pior talvez sejam os textos sem carnavalização gráfica. “O texto no computador fica limpo, organizado, justificado”, alerta o professor Robert Damton, da Universidade Harvard, respeitado historiador cultural. “Fica tão bem que parece dispensar revisão e pode ser despachado com um clique. Frequentemente o é, para desgraça de quem preza a clareza e o estilo.” A escrita, qualquer escrita, floresce no mundo digital, mas a leitura, a boa leitura, murcha.

“Nunca escrevemos tanto”, diz a professora Helen Sword, estudiosa da escrita digital na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, “O lado negativo é que muitos habitantes do maravilhoso mundo digital perderam, ou nunca tiveram, a habilidade de escrever uma prosa com estilo, bem estruturada,” (Helen conta – com espanto – que já viu sua filha, universitária de 21 anos, lendo Orgulho e preconceito, de Jane Austen, num iPod Touch.)

Para desconforto dos escritores, a vida digital é veloz. Uma história precisa causar impacto na largada. “Tem de ter sangue na parede já no fim do segundo paragrafo”, diz Lev Grossman, crítico literário da Time. Amores de suspense e mistério estão sendo duramente exigidos. Antes, um título por ano estava de bom tamanho. Agora, as editoras acham pouco. Ninguém precisa ser uma pororoca como o americano James Patterson (um livro por mês, 260 milhões de exemplares vendidos), mas não se pode mais ficar longe do mercado por muito tempo.

A americana Lisa Scottoline, autora de treze best-sellers, agora lança dois títulos anuais. Para tanto, entrou em regime de escravidão. Escreve 2 mil palavras por dia, trabalha da manhã à noite e não folga nos fins de semana.
Jonathan Franzen, o romancista americano mais festejado da atualidade, tem horror a livros digitais. Diz que são qualquer coisa, menos livros. “Palavras são palavras”, discorda Scott Turow, autor de thrillers jurídicos que ocupam o topo das vendas. “Não sou sentimental em relação ao papel.” Turow tem problema na coluna. Adora não ter de carregar livros pesados. Mas, como presidente da Authors Guild, a mais antiga entidade de escritores profissionais dos EUA, Turow está carregando um piano. Critica a pressão pela redução da remuneração dos autores no formato digital e acusa a Amazon de “prática predatória”, ao vender livro virtual abaixo do custo para matar livrarias concorrentes e dominar o mercado digital.

A invenção dos tablets e leitores eletrônicos é espetacular. Eles são fáceis de carregar, têm memória para mais de mil livros, baterias que duram horas. A cada novo lançamento, ficam mais legíveis. Na tela de um iPad um livro de arte é uma arte, com cores vivas, nitidez perfeita. Mas, tal como Sócrates, os estudiosos do nosso tempo estão preocupados com o impacto do mundo digital na cultura. Um dos primeiros a chamar atenção para a deterioração da qualidade da leitura foi o critico literário Sven Birkerts, ainda na década de 90. Birkens percebeu que seus alunos, às voltas com aparelhos eletrônicos, não conseguiam ler um romance com paciência e concentração. É fundamental que as novas gerações educadas no digital sejam capazes de ler bem, ler para imaginar, para refletir e – eis o apogeu e a glória da leitura – para pensar seus próprios pensamentos.

O temor é que o universo digital, com abundância de informações e intermináveis estímulos visuais e sonoros, roube dos jovens a leitura profunda, a capacidade de entrar no que o grande filósofo Walter Benjamim chamou de “silêncio exigente do livro”. Durante séculos, os livros impressos foram aperfeiçoados para favorecer a imersão. O tipo de letra, o entrelinhamemo, os espaços em branco – tudo feito como um delicado ‘convite à leitura. São aspectos relevantes para quem lê e para quem escreve. John Updike achava que seus livros só faziam sentido se impressos em determinada fonte – a Janson. A leitura on-line, de resolução imprecisa, luminosidade excessiva e crivada de penduricalhos piscantes, é só distração. Os leitores eletrônicos estão corrigindo boa parte dessas imperfeições, mas ainda têm longo caminho a percorrer. Estudo feito pelo professor Terje Hillesund, da Universidade de Sravanger, na Noruega, mostra que, durante uma leitura reflexiva, as pessoas gostam de manter os dedos entre as páginas, como que segurando uma ideia de páginas atrás, para revisitá-la quando quiserem. Intangível e volátil, o livro digital, neste aspecto, é uma nulidade (por enquanto).

Leitura profunda não é esnobismo intelectual. É por meio dela que o cérebro cria poderosos circuitos neuronais. “O homem nasce geneticameme pronto para ver e para falar, mas não para ler. Ler não é natural. É uma invenção cultural que precisa ser ensinada ao cérebro”, explica a neurocientista Maryanne Wolf. Para tanto, o cérebro tem de conectar os neurônios responsáveis pela visão, pela linguagem e pelo conceito. Em suma, precisa redesenhar a estrutura interna, segundo suas circunstâncias. Um cérebro reorganizado para ler caracteres chineses ativa áreas que jamais são usadas por um cérebro educado para ler no alfabeto latino do português. O fascinante é que, ao criar novos caminhos neuronais, o cérebro expande sua capacidade de pensar, multiplicando ali possibilidades intelectuais – o que, por sua vez, ajuda a expandir ainda mais a capacidade de pensar, numa esplêndida dialética em que o cérebro muda o meio e o meio muda o cérebro. Pesquisadores da área de neurologia cognitiva investigam se a desatenção intrínseca do digital está afetando a construção dos circuitos neuronais.

É cedo para saber. Por via das dúvidas, é importante garantir que um jovem forme circuitos neuronais amplos antes de render-se por completo à rotina digital. A boa literatura ajuda. É desnecessário fazer pesquisa científica para descobrir o impacto que nos causa a maestria de Amon Tchekov falando de uma dama e seu cachorrinho. Mas até existe pesquisa. Em 2008, cientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, reuniram 166 universitários e aplicaram um teste para avaliar características como extroversão, estabilidade emocional, afabilidade. Em seguida, dividiram os estudantes em dois grupos. Um grupo foi convidado a ler A dama do cachorrinho, de Tchekov, pequena pérola sobre a angústia e o arrebatamento de um casal de amantes. Outro leu a mesma história, só que em forma relatorial. Depois, os pesquisadores reaplicaram o teste. O grupo que lera a prosa de Tchekov mudara significativamente a percepção sobre suas emoções. O outro, que lera um texto burocrático, mudara muito menos.

A arte acaricia a alma, prova a pesquisa, mas haverá arte literária na era do pós-papel? É essencial que jovens digitais, crescidos na era do “selecione, corte e cole”, sejam educados a respeitar a integridade de um texto. É uma violência tirar um pedaço de O Eterno Marido, de Dostoievski, e pôr em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ou “selecionar” um trecho de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e “colar” em O Primo Basílio, de Eça de Queiroz – por mais semelhança dramática que haja entre essas obras. Nem tudo o que é bom é interativo. A crítica literária Marjorie Perloff (fã da poesia concreta brasileira) diz que a tradicional imagem do gênio – a mente brilhante que refaz o mundo desde seu reconditório – está morta. O excesso de informação é tal que os novos gênios serão banais, sem originalidade. A genialidade estará no domínio e distribuição da informação, não na sua reinvenção. Outros, como o poeta Kenneth Goldsmith, que escreveu um livro sobre o assunto, sustentam que a colagem, a apropriação – até o plágio, o tripé “selecione-corte-cole” – serão a tônica na literatura digital. É assustador.

Mark Twain gostava de arremessar um livro no gato só para ver o bichano saltar em pânico. O poeta Vinicius de Moraes lia e escrevia na banheira. Para o argentino Jorge Luis Borges, que morreu cego, mas nunca enxergou direito, o paraíso não seria feito de jardins e fontes, mas de bibliotecas. Orhan Parnuk, o turco que ganhou um Nobel, empilha no criado-mudo os clássicos que relê: Anna Karenina, Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica. Gabriel García Márquez tem 85 anos, mas, quando jovem, lia algumas páginas de dicionário todas as manhãs. Tudo isso será história na era digital. Não se joga tablet no gato. É perigoso levar aparelho eletrônico à banheira. As bibliotecas mudarão de aparência, talvez fiquem menos paradisíacas. Os dicionários já estão deixando de ser impressos, pois é mais fácil atualizá-los digitalmente – e, na nova era não há o que empilhar no criado-mudo além de um leitor eletrônico com milímetros de espessura. Mas a era digital tem um futuro carregado de promessas. Se será estéril (como temia Sócrates com a escrita) ou se será fértil (como a história se revelou), depende só de nós.

É preciso ser cético, duvidar.”

Na juventude, quando estudava direito, Roberta Shaffer trabalhou na Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington. Gostou tanto que prometeu voltar quando estivesse no fim da carreira de advogada. Há sete anos, voltou. Chama a biblioteca, com seu monumental acervo em mais de 400 idiomas, de fabuloso exemplo de democracia”. Ela responde pela aquisição de acervo. Leitora voraz, tem um leitor eletrônico, mas gosta mesmo é de livro no papel. A seguir, sua entrevista.

Veja – O que a senhora acha da leitura de livros digitais?

Roberta Shaffer – Temos examinado estudos sobre o impacto da leitura eletrônica no aprendizado. Os estudos ainda não são numerosos. Mas, até aqui, têm mostrado – e acho que isso vai mudar com o tempo – que as pessoas extraem mais informação ao ler livros físicos. O olho humano ainda não está treinado para absorver da tela do computador o mesmo tanto que absorve do livro de papel. Quando estamos olhando coisas no computador, na maioria das vezes estamos lidando com material visual ou material pouco denso. Textos narrativos, técnicos, densos requerem um meio mais estático para a boa absorção. Mas acreditamos que se trata de uma característica evolucionária. Por séculos, habituamo-nos à leitura em livros físicos. E só agora, só muito recentemente, nosso cérebro e nosso nervo óptico estão começando a lidar com um ambiente diferente. Leva tempo.

Veja – Com o mundo ficando cada vez mais digital, as pessoas têm vindo menos à Biblioteca do Congresso?

Roberta Shaffer – Infelizmente, o movimento hoje é menor. Mas, além disso, há outra questão que nos preocupa. As pessoas hoje têm uma tendência a confiar em qualquer resultado que a ferramenta de pesquisa lhes oferece como sendo “a melhor resposta”. Isso é preocupante. É a antítese de como a Biblioteca do Congresso gosta de oferecer informação. O conhecimento tem círculos concêntricos e a resposta que oferecemos está no centro do círculo, mas há todo um entorno. Nossa missão é dizer: “Esteja alerta sobre todas as ondulações ao redor da resposta central, todas as ondulações que tiveram impacto ou estão de algum modo relacionadas com o tema da sua pesquisa”. Na internet, por exemplo, as pessoas dependem do que lhes é servido sem saber como a informação foi selecionada. As pessoas não olham para trás. Isso é perigoso. É o que chamamos de “falácia do algoritmo”.

Veja – É possível reverter essa tendência apesar da popularização crescente do GoogIe, da Wikipedia?

Roberta Shaffer – Felizmente, sim. A Biblioteca do Congresso nunca esteve envolvida com ensino elementar ou médio. Mas, nos últimos dez anos, passamos a trabalhar com crianças desde o jardim de infância até o último ano do ensino médio. Estamos tentando ensinar aos alunos, desde a mais tenra idade, como é uma boa pesquisa. No site da biblioteca, oferecemos uma série de planos de ensino nos quais mostramos como trabalhar com fontes primárias, o valor de acessar um material original e não já previamente digerido. Tentamos demonstrar que uma mesma palavra pode ter tido um significado no século XIX e outro no século XX. É uma forma de mostrar a importância do contexto. Sobretudo, a ideia é treinar as crianças a não aceitar a primeira resposta que salta na tela do computador. É preciso ser cético, duvidar.

Veja – Apesar de tudo, as pessoas estão lendo mais?

Roberta Shaffer – Temos duas tendências assustadoras nos Estados Unidos. Uma é o analfabetismo. Há gente aprendendo por outros meios – auditivo, visual. Não há a mesma pressão para ler de quando éramos uma sociedade estritamente textual. A outra tendência é gente que sabe ler, mas não lê. Só lê on-line, e-mails, blogs. Não faz leitura em profundidade. Considero uma tendência assustadora.

Veja – A senhora lê livros digitais?

Roberta Shaffer – Leio de tudo. Viajo muito no meu trabalho e, antes, levava sempre uma mala de livros. Agora, ando com meu leitor eletrônico carregado de coisas que podem me interessar. Levo material clássico, contemporâneo, pilhas de jornais e revistas. Mas, talvez devido a minha idade, vejo que minha leitura eletrônica é superficial. Quando quero fazer uma leitura densa, mais concentrada, prefiro recorrer aos livros impressos.

Veja – Qual o acervo da biblioteca em termos de livros digitais?

Roberta Shaffer – É uma coleção pequena, ainda, porque não colecionamos leitura popular, a menos que tenha algum valor para pesquisa, nem material didático. Esses dois critérios excluem grande parte do que está sendo produzido em formato digital. Mas temos um acervo de 158 milhões de itens em mais de 420 línguas. Não temos apenas livros. Temos filmes, fotografias, músicas, manuscritos, partituras, notações coreográficas, uma fenomenal coleção de mapas. A biblioteca é aberta a todos, não cobramos nada nem perguntamos o motivo da pesquisa. Qualquer um pode vir até aqui, qualquer um pode ver os cadernos de Galileu, tocar numa carta escrita por George Washington. Acreditamos que o conhecimento não é o domínio apenas da elite financeira ou intelectual. Fico orgulhosa do meu país por oferecer isso. Considero a Biblioteca do Congresso um exemplo fabuloso de democracia.