Criança ainda não é prioridade



A absoluta prioridade na proteção integral dos direitos da população infanto-juvenil ainda é uma falácia no Brasil. A opinião tem como base os dois dias de atividades promovidas em um congresso sobre o tema, realizado pela Fundação Abrinq, nos dias 23 e 24 de outubro, e que reuniu cerca de 800 representantes da sociedade civil, poder público e setor privado.

Disposta na Constituição Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e em uma série de convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, a prioridade na defesa do público é “letra morta” sob o prisma das políticas públicas em favor da infância.

“Basta ver a crise no mercado, o fiasco do neoliberalismo. Enquanto esses agiotas recebem ajuda, o governo é incapaz de extinguir da DRU (Desvinculação das Receitas da União, que permite ao governo usar 20% de sua receita como bem entender), que poderia dar R$ 2 bilhões à implantação do Plano Nacional de Educação, que já está pronto”, criticou o celebrado professor-doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Dalmo Dallari.

No entanto, essa não foi a única constatação lançada durante o congresso. Dividido na análise de três grandes direitos - à Educação, à Saúde e à Proteção Integral e Especial – o programa incitou os participantes a analisarem suas próprias práticas. “O evento é um estímulo à inquietude de não fazer mais do mesmo”, analisou o presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista da Costa.

Temas

Durante os dias de evento, os convidados foram divididos em grupos temáticos, nos quais realizaram um balanço e perspectivas das ações intersetoriais voltadas à criança e ao adolescente. Nelas, foram feitos diagnósticos de urgências para a construção de políticas mais claras para o segmento.

Em uma das mesas, por exemplo, ao discutir sobre direito à educação para a primeira infância (0 a 6 anos), ficou claro entre os palestrantes a crença de que muitos dos problemas educacionais brasileiros residem na falta de vagas em creches. Segundo o Plano Nacional de Educação, de uma população de 13,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos, apenas 17% têm acesso a algum tipo de atendimento educacional.

A primeira infância é decisiva no processo de desenvolvimento dos indivíduos. Daí a importância da educação infantil para as crianças de 0 a 6”, afirma o especialista em educação infantil, Vital Didonet.

Em outro painel, este sobre Desenvolvimento Social e Combate ao Trabalho Infantil, analisou-se a importância da Educação no combate às piores formas de trabalho e à exploração de mão-de-obra. A pesquisadora e colaboradora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas, Jacqueline Brigadão, levantou três pontos principais em sua apresentação.

O primeiro é que a Educação deve ser vista de forma ampliada, incorporando preocupações da assistência social. “Entender o ensino como estratégia de superação da pobreza, como cidadania”, argumentou.

Em seguida, mostrou como a legislação ainda pode ser considerada pouco esclarecedora no que diz respeito à defesa dos direitos. “O ECA apenas nos dá negativas, em que a criança não pode, não deve... mas não há qualquer indicação sobre o que deve ser feito, de onde virá o dinheiro. Outro exemplo é a área assistência social que sequer tem orçamento próprio, seja em âmbito federal, estadual ou municipal”, afirmou.

No fim, mostrou-se preocupada com o que chamou de hipocrisia, na qual a pobreza explica o trabalho infantil. “Isso é um absurdo. O meu filho tem o direito a ir à escola e o dos outros têm que ajudar a família”, ironizou.

Segundo dados trazidos pela secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Isa Maria de Oliveria, cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) trabalham. Entre 7 a 14 anos, 660 mil estão fora da escola. Destes, 25% têm responsáveis com menos de um ano de escolaridade e renda de ¼ de salário mínimo.

Mesmo com esses dados, o governo federal não expandiu o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (que atende 877 mil crianças e adolescentes), como o prometido, apenas incluindo-o no Bolsa-Família”, recordou Isa.

Outra crítica contundente foi realizada pela psicopedagoga, Isa Maria Guará. Segundo ela, há pouco diálogo entre pastas governamentais ao se realizar políticas públicas para crianças, adolescentes e jovens, tornando-as descoladas em vez de complementares. “Essa movimentação para deixar as políticas mais orgânicas vêm de baixo, dos movimentos sociais”, disse.

Pesquisa Durante o Congresso, a Fundação Abrinq lançou um relatório inédito sobre a evolução das políticas públicas municipais voltadas a essa faixa da população: Tendências da Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes no Brasil.

O documento traz a conjuntura do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente no Brasil, traduzindo os principais indicadores sobre três eixos das políticas públicas para infância e adolescência (que pautaram o evento): Educação, Saúde e Proteção Especial. Revela ainda qual parte do orçamento é destinada a Crianças e Adolescentes.

A análise indica a tendência dos municípios brasileiros na implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), revelando o quanto as políticas públicas ainda precisam avançar para efetivar a garantia dos direitos desse segmento populacional, principalmente no que se refere ao orçamento. Por exemplo, há municípios que investem a irrisória quantia de R$ 75 por criança/ano na assistência social.

Outra conclusão apresentada é falta de estrutura dos municípios na implementação do sistema único da assistência social (SUAS), bem como a necessidade de investirem na formação dos professores para a melhoria na qualidade do ensino.

No que se refere ao comprometimento da sociedade civil na participação da elaboração das políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente, apesar dos avanços, o estudo aponta para a necessidade de maior envolvimento e controle social.

Esse estudo é resultado da avaliação de 535 municípios que participaram do Programa Prefeito Amigo da Criança nessa gestão, de 2005 a 2008.

Desenvolvido pela Fundação Abrinq, o programa tem como objetivo comprometer os prefeitos na implementação de ações e políticas que resultem em avanços nos direitos das crianças e adolescentes, fortalecendo os mecanismos preconizados pelo ECA.

Conclusões

Embora as conclusões do evento apontem para um olhar mais cuidadoso sobre indicadores e avaliação, co-responsabilidade (maior envolvimento da sociedade), qualificação do conhecimento da legislação, transversalidade do território e a criação de redes de apoio aos direitos das crianças e adolescentes, o evento deixa duas lições incontestáveis.

A primeira é a de que, como disse o presidente do Conselho Consultivo da Abrinq, “não há dúvida sobre o que fazer”. A segunda é que falta é posicionamento do Estado, sua conseqüente falta de orçamento, isso leva a uma falta de clareza sobre quem são os responsáveis.

Sobre falta de posicionamento político, não deixou de ser curiosa a participação do ministro Paulo Vannuchi, Secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, no evento. Convidado para dar a palestra na abertura do evento, o ministro parece não ter seguido o protocolo e não tocou nos temais mais candentes em sua apresentação. Segundo nota emitida durante o congresso no site da Fundação Abrinq “a falta de informações a respeito da situação da infância e adolescência no país por parte do ministro deixou a platéia indignada”.

As questões que os representantes da sociedade civil queriam que o ministro respondesse ficaram no ar: por exemplo, quanto o governo Lula já investiu para a implementação de políticas em favor das crianças e adolescentes e, principalmente, qual é o seu plano de ação e quanto pretende investir neste setor até o final do seu mandato em 2010?”, questiona o texto.

A nota ainda comenta que, cobrado sobre os compromissos assumidos pelo governo brasileiro com o Projeto Presidente Amigo da Criança, da Fundação Abrinq, de efetivar políticas públicas garantidoras de direitos e de prestar contas à sociedade, por meio da apresentação de um plano de ação para gestão 2007-2010, o ministro argumentou que o prazo dado "foi exíguo".

Para ele houve muitos avanços nestes 18 anos de promulgação do ECA. Mas o que fazer daqui pra frente? Era isso que a gente queria que o ministro falasse. Não podemos nos contentar com indicadores que não, necessariamente, mostram a realidade”, diz a nota.

Ao final do Congresso, o presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista da Costa, fez uma provocação a todos os presentes. Ao agradecer os resultados dos debates e palestras realizados durante o evento, o presidente deixou claro que ainda há muito a ser feito “Agora, vamos embora, mas não esqueçam que, daqui a pouco, 4 milhões de crianças que estavam trabalhando tentarão dormir”.

A fundação sistematizará o conteúdo discutido nas salas e propõe publicar os resultados nos próximos meses em seu site: www.fundabrinq.org.br


Autor: Rodrigo Zavala/Rede
Em: Rede GIFE ONLINE
Data: 27/10/08

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