Quando a tecnologia ainda era uma novidade, muitas profecias sobre o seu futuro foram anunciadas e, pouco tempo depois, tornaram-se obsoletas. Uma das mais conhecidas, a de Ken Olson, chairman e fundador da Digital Equipment Corporation, é talvez a que mais longe passou do alvo proferido. Olson afirmou que não havia qualquer razão para que alguém quisesse ter um computador em casa. De 1977, ano da falida previsão, aos dias de hoje, tudo decorreu de forma oposta à profecia. No Brasil, as vendas de computadores chegaram, no primeiro trimestre deste ano, a 2,82 milhões de PCs, o que equivale a mais de 21 computadores vendidos por minuto, segundo dados da consultoria IDC (International Data Corporation).
Essa tendência reflete-se no mundo todo, principalmente em países de economias emergentes, como é o caso de Brasil, Rússia, Índia e China. À medida que aumenta o número de computadores domésticos, cresce também o contingente de usuários da internet. Nesse sentido, consultoria JupiterResearch, prevê que, em 2012, um quarto da população mundial terá acesso à rede, chegando ao patamar de 1,8 bilhões de pessoas conectadas. Hoje, no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), 22,4% da população maior de 10 anos de idade tem acesso à internet, pelo menos uma vez por mês.
A revolução digital, há muitos anos prevista e estudada por teóricos mais precisos que Ken Olson, já é uma realidade e tem modificado o comportamento e as relações humanas. Carro-chefe dessa revolução, a internet impulsiona novas linguagens, formatos e meios de difundir a cultura. Mas ela não é a única. Aparatos tecnológicos como câmeras de vídeo e celulares influenciam diretamente a implementação de projetos culturais.
Exemplo dessa apropriação tecnológica para a cultura, o projeto Anima Escola, desenvolvido no Rio de Janeiro, foi concebido para suprir uma demanda de professores que freqüentavam o Estúdio Aberto do Festival Anima Mundi e queriam aprender as técnicas para realizar oficinas de animação com seus alunos. “Entre uma sessão e outra do festival Anima Mundi, ensinávamos o público a montar, rapidamente, seu próprio filme de animação. Isso despertou o interesse das crianças participantes e de seus professores, que pensaram em inserir a experiência no cotidiano escolar”, conta Joana Milliet, coordenadora do Anima Escola 2008 - que percorrerá escolas municipais do Rio de Janeiro no segundo semestre deste ano. Em seis anos de existência, o projeto capacitou 1.473 professores e 9.610 estudantes.
Joana acredita que o advento das novas tecnologias, como as utilizadas no Anima Escola, tornam as técnicas de linguagem de animação mais próximas e compreensíveis para os participantes. “Antigamente, o processo de produção de um filme de animação era mais caro e difícil de realizar. Hoje, temos um software gratuito e fácil de se operar, o MUAN, que captura e edita animações. Entendendo os princípios básicos da linguagem da animação, qualquer pessoa pode fazer seu filme, seja na escola ou em casa”, conta. O MUAN – que está disponível para download no site www.muan.org.br – possui código aberto, o que significa que os próprios usuários do programa podem atualizar o software, tendência comum na sociedade tecnológica.
O que o projeto Anima Escola tem alcançado em suas oficinas é um dos reflexos do que a apropriação da tecnologia acarreta nos dias atuais: a transformação de espectadores em produtores de conteúdo. E, ao contrário do que possa parecer, a mudança de paradigma não substitui a produção cultural como ela é conhecida, mas, sim, amplia suas possibilidades, conforme explica Joana. “Mesmo utilizando novas tecnologias, todo o processo de produção de uma animação é bastante artesanal. Para fazer um filme, podem ser utilizados desenhos, massinhas de modelar, cartolina, itens do artesanato local ou o que mais a imaginação intuir. A diferença é que a tecnologia proporciona uma comunicação do conteúdo mais ampla, cria meios para realizá-lo e democratiza o acesso”.
Com a possibilidade de se expressar em diferentes linguagens, os professores capacitados pelo Anima Escola podem trabalhar melhor os temas da cultura local, aproximando a escola da realidade do aluno. “Com uma câmera digital e um computador, o professor já pode fazer uma animação. No projeto, conseguimos melhorar, ano a ano, a qualidade técnica dos vídeos, ainda que nossa maior preocupação continue sendo a qualidade e riqueza do processo, e não o produto final”, salienta a coordenadora do Anima Escola 2008.
Reciclar tecnologia
Para ajudar a reduzir a falta de acesso à informação e à tecnologia, carências ainda preocupantes na sociedade brasileira, um grupo de jovens se mobilizou em rede e deu início a um projeto denominado MetaReciclagem. No começo, em 2002, o foco era a captação de computadores doados, que eram remanufaturados e colocados em funcionamento, com o uso de software livre, para serem direcionados a projetos sociais. Mas o projeto ganhou vulto e tanta notoriedade que passou a ajudar na formulação de políticas públicas de tecnologias de informação e comunicação, em esfera federal. “Hoje, a MetaReciclagem articula ações de apropriação crítica de tecnologias. Já tivemos a oportunidade de atuar em diversos projetos de tecnologia social, tanto em âmbito governamental quanto no terceiro setor”, conta Felipe Fonseca, um dos criadores da MetaReciclagem.
A MetaReciclagem também desenvolve ambientes colaborativos na internet, incentivando a formação de redes sociais. “Estamos fazendo nossa parte para valorizar a cultura brasileira, na qual a invenção e a criatividade fazem parte do cotidiano”, diz Fonseca. Para ele, a internet é um ambiente fantástico para descentralizar a informação e a produção artística e cultural. “A maior disponibilidade de ferramentas de comunicação e o acesso à informação e à cultura trazem mais benefícios do que problemas, a partir da emergência de uma cultura mais colaborativa, humanista e ética”, argumenta.
Com essa articulação em rede e com a convergência digital dos meios eletrônicos, as formas de interação surgidas nesse processo têm invertido a lógica tradicional, que previa um conteúdo único feito para milhões de pessoas. Agora, são milhões de conteúdos produzidos para cada pessoa, ou seja, um amplo leque de canais difundindo informação a diversos públicos interessados.
Baseado nesse cenário, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, fez uma análise reflexiva do tema, na 3ª Audiência Pública sobre Conteúdo Audiovisual em Tempos de Convergência Tecnológica, realizada no Senado Federal, em 23 de agosto de 2007, e afirmou que “a convergência digital é um fenômeno cada dia mais cultural, e vai afetar, no médio prazo, as chances e oportunidades culturais de cada brasileiro”.
Para Gil, a grande vantagem é que as novas formas de produzir conteúdo se tornam, também, novas formas de permitir o acesso à cultura e à produção cultural. “O que chamamos de cultura digital é uma possibilidade aberta para avançar na expansão das fronteiras que limitam dramaticamente o acesso à informação e à tecnologia”, disse Gil aos parlamentares.
Sobre os temas democratização do acesso à cultura e à informação, a cidade de Pequim, na China, tomou uma atitude visionária. Símbolo do crescimento que a China tem alcançado nos últimos tempos, apesar da resistência política à abertura da internet e da censura que ainda existem no país, a cidade planeja construir, até 2010, uma rede de conexão à internet sem fio, que cobrirá toda a capital chinesa. Para isso, o projeto Pequim Sem Cabos prevê a construção de nove mil pontos de acesso wi-fi, distribuídos em locais públicos, e 150 estações com tecnologia sem fio (wi-max). Tudo isso para unir tecnologia à produção, sobretudo a cultural, e disponibilizá-la à população.
Com essa iniciativa, os chineses demonstram terem compreendido muito bem o que um dos mais famosos sociólogos espanhóis e estudioso da rede, Manuel Castells, profetizou em seu livro A Galáxia da internet. Com muito mais chances de ser lembrado por seu acerto, e não pelo erro, como Ken Olson da Digital Equipment Corporation, Castells afirmou que a internet seria, acima de tudo, uma criação cultural e que as relações humanas, cada vez mais, se darão em um ambiente multimídia, cujos impactos ainda estão por serem estudados.
Data: 31/07/2008
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