Em um país em que quase 60% da população nunca usou a internet, segundo dados do NIC.br, imaginar uma rede social adotada em massa por mais de 40 milhões de usuários, em uma reprodução demográfica relativamente tendenciosa às classes mais altas, mas com grande representatividade entre as mais baixas, é algo digno de um fenômeno.
A rede social criada em 2004 por Orkut Buyukkokten em suas horas vagas no cargo de engenheiro de software no Google encontrou tamanha recepção entre os usuários brasileiros que, tal qual Maizena para amido de milho e Gilette para lâminas de barbear, se tornou sinônimo de rede social no Brasil.
Quase cinco anos após se abrir para os primeiros brasileiros, a rede social do Google se vê às voltas com a introdução da plataforma de aplicativos OpenSocial, que começa nesta quinta-feira (10/07) no Brasil pretende trazer serviços e utilidades para dentro da rede, em um mercado amplamente favorável.
No ascendente mercado mundial de redes sociais, o Brasil ocupa uma rara posição em que a rede social dominante não sofre qualquer tipo de ameaça direta de qualquer outro concorrente, em um desdobramento do ambiente encontrado pelo Orkut quando os primeiros perfis de brasileiros começaram a ser criados.
Nos Estados Unidos, o Facebook recentemente botou mais lenha na fogueira deste setor ultrapassando o MySpace, até então a maior rede social do mundo, em número de usuários. Na Europa, a briga é ainda intrincada entre três concorrentes (Bebo, MySpace e Facebook), que trocam de posições em diferentes países.
A América Latina, com a exclusão de Brasil e Paraguai (com semelhante preferência pelo Orkut), se divide entre Hi5, Metroflog e MySpace, segundo o mapa de redes sociais publicado pelo jornal francês LeMonde no começo de 2008.
No Brasil, são mais de 40 milhões de usuários, responsáveis por 54% de todos os inscritos na rede social. Rival direto mais próximo do Orkut, o MySpace vem apresentando crescimento acentuado desde que iniciou sua operação nacional, mas acabou de passar dos dois milhões de cadastrados em maio, segundo dados do IBOPE//NetRatings.
O que faz com que uma rede social criada como projeto extra-profissional de um engenheiro chame tanta atenção e reúna tanto usuários em um mercado de internet tão marcado pela exclusão digital, transformando o Orkut no primeiro legítimo fenômeno brasileiro na internet?
Pesquisadores, engenheiros do Google e analistas de mercado consultados pelo IDG Now! apontam a interseção de três principais motivos responsáveis pela explosão do Orkut entre os brasileiros.
¨O Orkut foi a ferramenta certa no lugar certo¨, define bem a pesquisadora Raquel Recuero, da Universidade de Pelotas, em relatório feito por equipe comandada por Raquel a pedido do Google.
O primeiro deles é um timing preciso. Os primeiros convites para o Orkut começaram a circular entre engenheiros e profissionais do mercado de tecnologia no Vale do Silício, onde o Google está localizado, a partir de janeiro de 2004, quando foi lançado.
É praticamente impossível apontar com exatidão onde foram criadas as primeiras contas do Orkut no Brasil, mas o Google defende que alguns convites foram parar nas mãos de engenheiros e entusiastas brasileiros em cidades como São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, com forte apoio da comunidade de código aberto.
Em fevereiro, uma provável explicação sobre como brasileiros conseguiram os convites apareceu em um vídeo do co-fundador da Eletronics Frontier Foundation (EFF), John Barlow, detalhando a José Murilo Junior, do Global Voices Online, como tinha repassado 100 convites da rede para brasileiros por entender o Brasil como ¨uma sociedade amplamente conectada¨.
Há quem defenda que muitos dos contatos para os quais Barlow mandou os convites foram feitos durante o festival Mídia Tática Brasil, realizado em março de 2003 em São Paulo, onde o co-fundador da EFF esteve presente, junto a jornalistas, ciberartistas, ativistas online e pesquisadores sobre o ciberespaço brasileiro.
É provável que, mais do que ser o principal responsável pela popularização, Barlow ajudou a fomentar a competição entre núcleos de amizades formados por early-adopters que se registrou a seguir.
Segundo Raquel, a partir de março de 2004, o Google registrou altos índices de crescimento focado em determinadas cidades que indicavam uma suposta competição entre os núcleos e, em um segundo momento, contra os usuários norte-americanos.
Eduardo Tuhler, gerente de produto do Orkut no Brasil, reforça a situação citando a liderança do Rio Grande do Sul nos primeiros meses do Orkut como justificativa para a adesão de desenvolvedores e membros da comunidade de software livre de São Paulo e Rio de Janeiro.
O relatório elaborado por Recuero cita, inclusive, a influência de estudantes das universidades de São Paulo (USP) e Sagrado Coração (USC) e funcionários da Conectiva, desenvolvedora de distribuição de Linux que atende atualmente pelo nome de Mandriva, após a fusão com a francesa Mandrake em abril de 2005.
O fato de a rede pertencer ao Google, visto com bons olhos pelos brasileiros, aumentou a adesão ao Orkut neste estágio, indica o relatório.
O ritmo de crescimento, baseado unicamente na rivalidade entre cidades nos primeiros meses, começou a ganhar mais corpo com as primeiras matérias na mídia sobre o fenômeno de uma rede social em ascensão, o que fechou um círculo vicioso: quanto mais usuários ganhava, maior a cobertura da imprensa brasileira, que atraía mais pessoas que não tinham conhecimento do Orkut.
Dois outros fatores, explica Tuhler, temperaram a histeria que começou a se formar ao redor do Orkut: a mais evidente era a necessidade de um convite para participar, o que instigava a curiosidade dos que ainda estavam de fora.para entender qual era o grande atrativo da rede social. Isso agiu como uma espécie de fermento para a vontade do internauta em fazer seu perfil.
O segundo é bem conhecido de usuários antigos do Orkut e, à primeira vista, pode facilmente ser encarado como demérito: os problemas de servidor enfrentados pelo Google para dar vazão à procura.
A latência enfrentada pelo Orkut em seus primeiros meses, escancarada pela irônica mensagem ¨Bad bad server, no donut for you¨(¨mau, mau servidor, sem rosquinhas pra você¨, em tradução livre), não se mostrou suficiente para fazer com que usuários abandonassem o serviço por um rival, e se transformou em um voto confiança dado ao Google, segundo o executivo.
A possibilidade de se abandonar o Orkut por qualquer outra rede social é o segundo motivo que possibilitou a alta penetração do serviço no Brasil - simplesmente não havia um concorrente direto no País.
¨Brasileiros tinham (na época) grande experiência com outras ferramentas (como fotologs e weblogs) e uma rede social com perfis, como o Orkut, era algo novo que precisava ser testado. Alguns já haviam tido experiência com o Friendster, mas não gostaram da interface¨, afirma o relatório elaborado pela equipe de Raquel.
Até que o MySpace formalizasse sua operação brasileira e começasse a bolar estratégias para o mercado nacional, como shows secretos e debates políticos para jovens, foram três anos e meio sem qualquer rivalidade formal ao Orkut no Brasil.
Chegar antes, porém, não significa ter sucesso garantido - nomes como ICQ, Napster e Netscape, pioneiros e esquecidos em seus setores, provam a teoria. E é aí que entra o terceiro motivo do sucesso do Orkut: sua interface simples.
¨Esta interface simples do Orkut é muito propícia a novos usuários. Ela exige pouco domínio prévio de interface web, como exigem disparados o Facebook ou o Second Life¨, explica o presidente da Agência Click, Abel Reis. Nas palavras de Tuhler, o Orkut ¨tem alto nível de usabilidade¨.
Em palavras mais simples, o Orkut é fácil de se usar mesmo para quem não conhece inglês, exigência para se inscrever no serviço até abril de 2005, quando a versão em português foi lançada.
Além de conseguir se localizar facilmente na ¨simplicidade tosca¨ dos menus e ferramentas, como apelida Reis, inscritos poderiam facilmente ver, no perfil de contatos ou desconhecidos, os amigos e a quais grupos aquela pessoa pertencia, algo não tão fácil em um serviço como o Facebook, com sua cultura digital mais madura, classifica o presidente da Agência Click.
Com a alternância entre aparições na mídia e a conseqüente procura de usuários que conheceram o Orkut apenas pela TV, a rede viu o número de brasileiros ultrapassar o de norte-americanos no ranking geral apenas seis meses depois de ser lançada (o que acarretou, inclusive, uma festa em São Paulo pela efeméride) e atingiu massa crítica além dos usuários entusiastas com menos de 25 anos que desbravaram o Orkut.
Vale lembrar que, por mais que carregasse características que facilitassem sua adoção, o Orkut é apenas o veículo que, até o momento, melhor comporta a expressão online do brasileiro médio, entidade vista por pesquisadores e analistas de mercado como amplamente sociável e fortemente atraída por serviços gratuitos de interação que dêem vazão ao seu espírito gregário de trocar ¨experiência, informações e memória¨, como defende Reis.
Comunidades, crachás e GIFs
A mistura entre facilidade de uso, customizações na medida para o gosto do internauta nacional e uma aparente anarquia pela publicação de conteúdo (o que acarretaria mais tardes problemas sérios para o Google Brasil junto a autoridades brasileiras) fomentou um certo comportamento padrão do brasileiro dentro do Orkut.
A carência de ferramentas mais avançadas, algo que o Google tenta combater com o lançamento do OpenSocial, se mostrou uma arma para não confundir usuários sem o que Abel Reis chama de ¨maturidade online¨.
Ao mesmo tempo, o Orkut permite configurações de recados e depoimentos com ¨coisas de gosto duvidoso e um pouco eletrizantes¨, segundo Reis, que se provaram bastante populares e alimentaram um rico ecossistema de sites com GIFs a animações para a rede social.
Uma característica marcante do Orkut, defende Recuero, é se juntar a comunidades não como uma forma de debater assuntos dentro dos fóruns, mas apenas como uma forma de expressar a seus contatos a quais grupos pertence ou quais idéias o usuário defende, como se os grupos fizessem o papel de ¨crachá digital¨ sobre suas preferências.
De tão forte, a característica sustenta os critérios usados pelo IBOPE//NetRatings, em sua recém-anunciada ferramenta para avaliar o impacto da reação de consumidores dentro de redes sociais, no Orkut, o projeto toma como base apenas o nome das comunidades às quais usuários com determinado perfil definido pela empresa que encomenda o estudo estão atrelados.
Rogério de Paula, antropólogo da Intel, defende ainda que o Orkut tomou lugar como calendário pessoal, pela administração de datas comemorativas ou aniversários de seus contatos.
Fora a agressiva campanha da operação brasileira, que deixa claro sua rivalidade com o Orkut freqüentemente, o MySpace pode ter parte do crescimento na sua base relacionada à possibilidade de também integrar animações e vistosos GIFs ao perfil do usuário. O salto do MySpace Brasil de menos de 50 mil usuários para mais de 2 milhões em apenas seis meses significa que o Orkut terá concorrência de verdade à frente no mercado brasileiro?
Orkut: ainda imbatível?
Alexandre Magalhães, analista do IBOPE//NetRatings, é direto: em médio e longo prazo, sim. Por enquanto, o Orkut funciona muito mais como um fornecedor de conteúdo para seus supostos rivais do que realmente um serviço capaz de centralizar todas as atenções.
¨Como (o tráfego de redes sociais no Brasil) está crescendo muito, eles são mais impulsionadores um do outro que concorrentes. Não vejo pessoas procurando alternativa ao Orkut. Portais sofrem mais perigo¨, explica Magalhães, relacionando os tradicionais centralizadores de conteúdo e tráfego na internet brasileira.
Ainda que uma migração em massa em curto prazo do Orkut, Raquel reconhece um possível risco de adoção em massa de rivais, especialmente o MySpace (a interface do Facebook é uma clara dificuldade ao internauta médio, ela defende), mas alerta para a consolidação da rede do Google como principal entrave.
O MySpace Brasil sabe do tamanho do problema e corre atrás de uma solução que leve a rede social para as massas sem o círculo vicioso ou a curiosidade da mídia pelo ineditismo de um serviço social no país - o diretor geral do serviço, Émerson Calegaretti, já admitiu que vem negociando com canais de TV para reprodução parcial de conteúdo e dos debates políticos que promoverá durantes as Eleições 2008.
¨Quando o MySpace começou a ganhar tração, o Orkut já tinha capturado os corações e mentes dos brasileiros. Existe pouco incentivo para mudar para uma diferente tecnologia se todos seus amigos já estão ao seu redor¨, explica Danah Boyd, pesquisadora de mídia social na Universidade de Berkeley, rejeitando a possibilidade de atração para um serviço real pelo melhor gerenciamento de privacidade, quesito no qual, por exemplo, o Facebook supera o Orkut.
¨As pessoas vão onde seus amigos estão¨, sintetiza Boyd, remetendo a uma frase de LuliRadfaher, professor da Universidade de São Paulo, que pode soar mais agradável aos ouvidos dos entusiastas mais jovens que começaram a popularizar o Orkut no Brasil em 2004 - “uma comunidade online é como um bar - o usuário não vai pela cerveja nem pela comida. Vai pelas pessoas que estão ali”.
Seja pelos dados do IBOPE//NetRatings ou pelo potencial viral que aplicativos do OpenSocial, como ¨Vou Não Vou¨, têm entre usuários brasileiros, a festa (mais um rodeio que um boteco nos últimos anos) está longe de terminar.
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